sexta-feira, 11 de novembro de 2011

O Sobrinho do Mago - 10º cap. - A Primeira Piada

Era decerto a Voz do Leão. As crianças já haviam adivinhado que Ele falava. Mesmo assim, quando falou, foi um choque para elas, ao mesmo tempo agradável e terrível.

Das árvores surgiram criaturas selvagens, deuses e deusas da floresta; chegaram com eles os faunos, os sátiros e os anões. Das águas saíram o deus do rio com suas filhas, as náiades. E todos eles e todos os animais, com suas vozes diversas, graves ou estridentes, roucas ou claras, replicaram:

– Salve, Aslam! Ouvimos e obedecemos. Estamos despertos. Amamos. Pensamos. Falamos. Sabemos.

– Mas, com licença, ainda não sabemos muito – falou uma voz nasal e bufante. As crianças levaram um susto, pois fora o próprio Morango que falara.

– Formidável! O velho Morango! – exclamou Polly. – Estou feliz de saber que ele também foi escolhido para ser um animal falante.

E o cocheiro, que estava então ao lado das crianças, disse:

– Macacos me mordam! Sempre falei que aquele cavalo tinha muita inteligência, sempre.

A voz forte e feliz de Aslam ressoou:

– Criaturas, eu lhes dou a si mesmas. Dou-lhes para sempre esta terra de Nárnia. Entrego-lhes as matas, os frutos e os rios. Entrego-lhes as estrelas e entrego-lhes a mim mesmo. Seus também são os animais mudos. Cuidem deles com bondade, mas não lhes sigam os caminhos, sob pena de perder a fala. Pois deles foram gerados e a eles poderão retornar. Não o façam.

– Não o faremos, Aslam, não o faremos – disseram todos.

Mas uma gralha atrevida acrescentou em voz alta: "Deixe conosco!", quando todas as outras vozes já haviam cessado; as palavras soaram claramente no solene silêncio. A gralha ficou tão encabulada que escondeu a cabeça sob as asas como se quisesse dormir. E todos os outros animais passaram a fazer barulhos engraçados, jamais ouvidos em nosso mundo: é assim que eles riem. Tentaram a princípio conter o riso, mas Aslam lhes disse:

– Riam sem temor, criaturas. Agora, que perderam a mudez e ganharam o espírito, não são obrigados a manter sempre a gravidade. Pois também o humor, e não só a justiça, mora na palavra. – Assim sendo, riram-se todos a valer. E foi a maior festa quando a própria gralha retomou coragem, subiu à cabeça de Morango, ruflou as asas e disse:

– Aslam! Aslam! Sou eu a autora da primeira piada? Todas as gerações serão informadas de que fui eu a fazer a primeira piada.

– Não, minha amiga – respondeu o Leão. – Não foi você que fez a primeira piada: você apenas foi a primeira piada.

Aí é que a turma se riu às bandeiras despregadas. A gralha não se agastou; pelo contrário, começou também a rir alto, até que o cavalo sacudiu a cabeça e ela perdeu o equilíbrio e caiu; mas antes de bater no chão lembrou-se das asas (novinhas em folha).

– Nárnia está fundada – disse Aslam. – Zelemos por mantê-la livre. Convocarei alguns para o meu Conselho. Cheguem até mim o chefe Anão, o Deus do rio, o Carvalho, o Sr. Coruja, o casal Corvo e o Sr. Elefante. Devemos parlamentar. Pois, apesar de o mundo não ter mais que cinco horas de idade, o mal já penetrou nele.

As criaturas nomeadas adiantaram-se e seguiram o Leão. Os outros começaram a conversar, dizendo coisas assim:

– Que é que penetrou no mundo?

– O nau

– Que é o nau?

– Não, ele disse o vau.

– Mas o que é o vau?

– Olhe, Polly – disse Digory –, tenho de ir atrás de Aslam, quer dizer, do Leão. Preciso falar com Ele de qualquer jeito.

– Você acha que a gente pode? Tenho os meus receios.

– Não tenho outra saída: é por causa da mamãe. Acho que só Ele poderá me dar alguma coisa que faça bem a ela.

– Vou com você – disse o cocheiro. – Gostei do jeitão Dele. E quero também trocar umas idéias com o Morango.

Os três avançaram intrepidamente – tão intrepidamente quanto possível – na direção da assembléia dos bichos. Encontravam-se estes tão ocupados em falar uns com os outros e fazer amigos, que só perceberam os três humanos quando estes se achavam bem perto. Também não ouviram tio André, que, tremendo à distância, gritava sem muita vontade de fazer barulho:

– Volte, Digory! Obedeça-me! Volte logo!

Quando por fim os três chegaram ao círculo dos bichos, estes calaram a boca e olharam para eles. Falou o Sr. Castor, finalmente:

– Bem, em nome de Aslam, quem são vocês?

– Por favor... – mal Digory disse isto, sem fôlego, um coelho interrompeu:

– Só pode ser uma espécie de alface graúda.

– Não somos alface, sinceramente, não somos – protestou Polly com toda a pressa necessária. – Não somos de ser comidos.

– Taí – falou a toupeira. – Eles falam. Quem já ouviu dizer de uma alface que falasse?

– Quem sabe não são a segunda piada? – sugeriu a gralha.

Uma pantera que lavava a cara deteve-se para comentar:

– Se isso é uma piada, gostei mais da primeira. Não acho graça nenhuma nessa aí – e, bocejando, voltou a lavar-se. Digory continuou:

– Por favor, não tenho tempo a perder. Preciso falar com o Leão.

Enquanto isso, o cocheiro tentava encontrar Morango; até que por fim deu com ele:

– Morango, companheiro velho de guerra. Não se lembra de mim? Ou vai dizer que não me conhece?

– O que é esta Coisa conversando com você, cavalo? – perguntaram.

– Bom – começou a responder Morango, com a maior lentidão –, não sei precisamente. Acho que nenhum de nós sabe muito a respeito de qualquer coisa assim. Tenho uma vaga idéia de já ter visto antes uma coisa assim. Tenho a impressão de já ter vivido em outro lugar – ou de ter sido uma outra coisa – antes que Aslam nos despertasse há poucos minutos. Está tudo muito confuso na minha mente. Parece um sonho. Mas no sonho aparecem coisas como estas três aqui.

– Hein? – exclamou o cocheiro. – Não me reconhece mais? Logo eu que lhe dava, quando podia, uma comidinha especial? Eu, que esfregava você! Eu, que cobria você com um cobertor velho no tempo do frio! Não esperava isso de você, Morango, francamente!

– Estou começando a me lembrar – falou Morango, pensativamente. – Ah, é. Deixe-me pensar um pouco mais. Isso mesmo: você costumava amarrar nas minhas costas uma coisa escura, horrível... Costumava bater em mim para que eu corresse... Eu corria, corria, mas aquela coisa escura não saía de cima de mim.

– Morango, cá para nós: a gente tinha de ganhar a vida, é ou não é? A sua e a minha. Sem trabalhar, sem chicote, como é que podia haver estábulo, feno, ração? Não vai negar que de vez em quando pegava a sua raçãozinha?

– Ração? – disse o cavalo, levantando as orelhas. – Sim, tenho uma ligeira idéia a respeito. Ah, estou me lembrando: você ficava sempre sentado atrás de mim, e eu ia correndo na frente, puxando você e a coisa escura. Era eu que fazia o trabalho todo.

– No verão, no verão, Morango. Trabalho duro para você e eu ali atrás na frescata. Mas, companheiro, e quando chegava o inverno? No inverno era você quem ficava quentinho, e eu lá atrás, gelado como um sorvete, com o nariz no vento, com as mãos duras, que quase nem dava para segurar as rédeas. Era ou não era?

– É uma história dura e cruel – disse Morango. – Não havia relva no caminho: tudo pedra.

– Verdade, pura verdade, companheiro! Que mundo duro aquele! Sempre falei que aqueles pedregulhos eram de matar o meu cavalo. Londres. Londres é dura. Eu também não gostava nem um pouco. Você era um cavalo do campo e eu também era um homem do campo. Eu até cantava no coro da igreja! Mas como é que eu ia ganhar a vida lá na roça?

– Por favor, por favor – pediu Digory. – Será que não podemos ir em frente? O Leão está cada vez mais longe. E eu tenho de falar com ele de qualquer jeito!

– Olhe aqui, Morango – disse o cocheiro –, este jovem tem uma coisa para conversar com o Leão, o tal de Aslam. Será que você não podia levar ele nas costas? Ele monta com jeito, é claro. Eu e a menina seguimos vocês.

– Montar? – perguntou Morango. – Estou me lembrando. Nas minhas costas... Já levei algumas vezes um pequenino de duas pernas, há muito, muito tempo. Ele costumava me dar uns quadradinhos brancos. Eram... oh, gostosíssimos, mais doce do que grama.

– É açúcar – informou o cocheiro.

– Por favor, Morango – implorou Digory –, leve-me para falar com Aslam.

– Está bem – respondeu o cavalo. – Uma vez ou outra, eu não me importo. Pode montar.

– Bom Morango! – disse o cocheiro. – Espera aí, rapaz, eu dou uma ajuda.

Digory, que já havia montado em pêlo em seu próprio pônei, sentiu-se muito à vontade.

– Toque, Morango – disse o menino ao cavalo.

– Por acaso teria aí um quadradinho branco? – perguntou o animal.

– Lamento muito, não tenho – respondeu o menino.

– Que se há de fazer! – disse Morango, partindo. Nesse momento, um enorme buldogue que andara farejando ruidosamente, disse:

– Olhem. Aquilo ali não é uma outra dessas criaturas esquisitas? Lá, na beira do rio, debaixo da árvore?

Os animais todos olharam e viram tio André muito quietinho entre os rododentros, esperando não ser descoberto.

– Vamos lá. Vamos ver o que é.

Assim, enquanto Morango trotava numa direção com Digory, acompanhado de Polly e do cocheiro, grande parte das criaturas corria para tio André, com rugidos, latidos, grunhidos e outros ruídos animados.

Precisamos voltar um pouco para explicar como a cena toda parecera a tio André. A impressão que ele teve foi muito diferente daquela das crianças e do cocheiro. Pois o que você ouve e vê depende do lugar em que se coloca, como depende também de quem você é.

Desde que os bichos apareceram, tio André foi se encolhendo cada vez mais na moita – e, é claro, não conseguiu ver muito bem. Mas ele não estava de fato interessado no que presenciava: sua única preocupação era que não corressem na direção dele. Como a feiticeira, era um homem incrivelmente prático. Nem chegou a reparar que Aslam escolhera um par de cada espécie de animal. Tudo o que viu, ou pensou que viu, foi um bando de animais selvagens rondando por ali. E não entendia por que os bichos não fugiam do Leão.

Quando chegou o momento solene e os bichos falaram, não percebeu nada, e por uma razão bem interessante. Assim que o Leão começou a cantar, ainda em meio à escuridão, tio André percebeu que o barulho era uma canção, e não gostou nada.

A canção fazia com que sentisse e pensasse coisas que não queria sentir nem pensar. Quando o sol nasceu e viu que o cantor era um leão ("um mero leão", como disse para si mesmo), fez tudo para convencer-se de que não havia canto algum, mas apenas rugidos, como fazem os leões em nosso mundo. "Devo ter imaginado que o Leão cantava; é porque estou com os nervos descontrolados. Alguém já ouviu um leão cantar?" Quanto mais belo o canto, mais tio André imaginava ouvir rugidos. O negócio é este: quando a gente quer se fazer de tolo, quase sempre consegue. Tio André conseguiu. Passou a ouvir apenas rugidos na canção de Aslam. Mesmo que quisesse voltar atrás, já era tarde. Quando afinal o Leão falou e disse "Nárnia, desperte", o tio não ouviu palavras; ouviu somente um rosnado. Quando os bichos responderam, ouviu latidos, uivos, zurros, miados. Quando caíram na risada... bem, você pode imaginar. Esse foi o pior momento para tio André. Aquela zoeira infernal de feras sanguinárias e esfomeadas! Depois, para arrematar-lhe a raiva e o terror, viu os outros três seres humanos se encontrarem, na maior calma, com os outros animais.

"Imbecis!", falou para si mesmo. "As feras vão comer os anéis junto com as crianças, e nunca mais poderei voltar para casa. Mas que menino egoísta este Digory! E os outros são da mesma laia. Se querem morrer, o problema é deles. Mas... e eu? Será que não pensam nisso? Ninguém se lembra de mim."

Por fim, quando um bando de bichos veio correndo para o lado dele, tio André virou as costas e também saiu em disparada. E agora podemos todos verificar que de fato o ar do mundo jovem fizera muito bem ao velho. Em Londres, já era velho demais para dar uma corridinha; em Nárnia, correu a uma velocidade que daria para bater todos os recordes de corridas de cem metros. Era de ver a aba do casacão revoando ao vento. É claro que a velocidade de nada lhe valia. Muitos dos animais eram mais rápidos; pela primeira vez na vida corriam e estavam doidos para exercitar os músculos. "Corre! Corre!", gritavam. "Deve ser o vau! Vamos cercar o vau! Depressa! Agarra!"

Em poucos instantes alguns lhe tomaram a dianteira, fechando-lhe o caminho. Outros o acuaram pela retaguarda. Por todos os lados tio André via o terror. Chifres de enormes alces e o carão imenso de um elefante sobrepunham-se à frente. Ursos muito sérios rugiam atrás. Leopardos de olhar frio e panteras de feições sarcásticas (como imaginou) miravam-no, agitando as caudas. O que mais o abatia era o grande número de bocas escancaradas. Os animais ofegavam; para ele, no entanto, era fome.

Tio André pôs-se a tremer. jamais gostara de animais, dos quais em geral sentia medo. Além disso, anos de experiências cruéis com os bichos só fizeram com que mais os temesse e odiasse.

– Bem, Sr. Coisa – disse o buldogue, com seu jeito de homem de negócios –, responda-me: você é animal, vegetal ou mineral?

Foi o que ele disse, na realidade; mas o que tio André ouviu foi:

– GRRR!

Pode parecer que os animais eram muito burros, por não perceberem logo que tio André era uma criatura da mesma espécie das crianças e do cocheiro. Mas devemos lembrar que os animais nada sabiam a respeito de roupas. Pensaram que a saia de Polly, o terninho de Digory e o chapéu-coco do cocheiro fossem partes de cada um, como as peles e as penas dos bichos. Nem poderiam saber que os três eram da mesma espécie, se não tivessem falado com eles. Mas tio André era bem mais alto do que as crianças e bem mais magro que o cocheiro. Vestia-se de preto de alto a baixo, com exceção do colete branco (já não muito branco) e da juba de seus cabelos (muito desgrenhada, agora); não se assemelhava a nada do que haviam reparado nos outros humanos. É natural que estivessem atrapalhados. Para agravar tudo, tio André parecia não ter o dom da fala.

É verdade que ele tentara dizer algo. Quando o buldogue falou com ele (ou, como pensava, rosnou para ele), o velhote estendeu a mão e arquejou:

– Totó...

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