segunda-feira, 7 de novembro de 2011

O Sobrinho do Mago - 9º cap. - A Criação de Nárnia

O Leão andava de um lado para o outro na terra nua, cantando a nova canção. Era mais suave e ritmada do que a canção com a qual convocara as estrelas e o sol; uma canção doce, sussurrante. A medida que caminhava e cantava, o vale ia ficando verde de capim. O capim se espalhava desde onde estava o Leão, como uma força, e subia pelas encostas dos pequenos montes como uma onda. Em poucos minutos deslizava pelas vertentes mais baixas das montanhas distantes, suavizando cada vez mais aquele mundo novo. Podia-se ouvir a brisa encrespando a relva.

E surgiam outras coisas além da relva. As mais altas encostas iam ficando escuras de urzes. Manchas de um verde mais intenso apareciam no vale. Digory não sabia ainda o que eram, até que surgiu uma pertinho dele: uma coisinha espigada que ia lançando braços para os lados, e os braços se cobriam de verde e iam ficando maiores a uma grande velocidade. Havia muitas dessas coisas à sua volta agora. Quando ficaram quase do seu tamanho, viu o que era:

– São árvores! – exclamou.

O único problema, como Polly observou mais tarde, é que não se podia ter um só momento de paz para olhar bem. Mal Digory dissera "árvores", teve de saltar, pois tio André já vinha para roubar-lhe o anel do bolso. Não teria sido grande vantagem para o tio, caso o tivesse conseguido, pois visou o bolso esquerdo, pensando ainda que eram os anéis verdes que levariam para casa. Mas Digory não queria perder nenhum dos dois.

– Pare! – gritou a feiticeira. – Volte. Mais longe. Se alguém chegar a dez passos de distância das crianças, estouro-lhe os miolos. – Ela tinha nas mãos aquela barra de ferro que arrancara do poste e dava mostras de que cumpriria sua palavra... E acrescentou: – Então, você está querendo partir com o menino para o seu mundo, deixando-me aqui!

Dessa vez, a revolta de tio André levou a melhor sobre o seu terror:

– Sim, minha senhora, estou! Sem dúvida alguma! É um direito que me assiste. Fui vergonhosa, abominavelmente tratado. Fiz o que pude para mostrar-lhe certas normas de civilidade. E qual foi a minha recompensa? A senhora assaltou – repito a palavra –, assaltou um distintíssimo joalheiro. Levou-me a obsequiá-la com um almoço excessivamente oneroso, para não dizer luxuoso, embora para isso eu tivesse de empenhar meu relógio. E, fique sabendo, minha senhora, nossa família não peca pelo hábito de freqüentar casas de penhor, a não ser meu primo Eduardo, quando serviu como voluntário da Cavalaria. Durante aquela indigesta refeição, seu comportamento e sua conversação atraíram a desfavorável atenção de todas as pessoas presentes. Sinto que estou socialmente arruinado. jamais poderei mostrar o meu rosto outra vez naquele restaurante. A senhora agrediu a polícia. A senhora roubou...

– Oh, pare com isso, distinto, pare com isso – disse o cocheiro. – É hora de ver e ouvir, não de falar.

Havia mesmo muito para ver e ouvir. A árvore que Digory notara em primeiro lugar já se tornara adulta, com os galhos balançando levemente, e eles pisavam agora numa relva macia, salpicada de margaridas e botões-de-ouro. Mais adiante, ao longo da margem do rio, cresciam salgueiros. Do outro lado, fechavam-se sobre eles emaranhados de arbustos de groselha floridos, lilases, rosas silvestres e azaléias. O cavalo fartava-se de relva nova.

Todo esse tempo, prosseguiam a canção do Leão e seu majestoso caminhar, de um lado para outro, para a frente e para trás. Aproximava-se mais e mais, o que era meio alarmante. Polly achava a canção cada vez mais interessante, pois começara a perceber uma ligação entre a música e as coisas que iam acontecendo. Quando uma fileira de abetos saltou a uns cem metros dali, sentiu que os mesmos estavam ligados a uma série de notas profundas e longas que o Leão cantara um segundo antes. Quando ele entoou uma seqüência de notas rápidas e mais altas, não ficou nada surpresa ao ver primaveras surgindo por todos os cantos. Com um indescritível frêmito, teve quase certeza de que todas as coisas (como disse mais tarde) "saíam da cabeça do Leão". Ouvir a canção era ouvir as coisas que ele estava criando: olhava-se em volta, e elas estavam lá. Era tão emocionante que Polly nem teve tempo de sentir medo. Mas Digory e o cocheiro ficaram um tanto nervosos com a aproximação do Leão. Quanto ao tio André, seus dentes estalejavam, mas, como seus joelhos tremiam demais, não saiu do lugar.

De repente a feiticeira caminhou ostensivamente na direção do Leão. Este se aproximava, sempre cantando, com passos lentos e pesados. Estava a menos de dez metros. Ela ergueu o braço e arremeteu a barra de ferro bem na sua cabeça.

Ninguém (muito menos Jadis) erraria àquela distancia. A barra acertou o Leão bem entre os olhos e caiu na relva. O Leão continuou a caminhar: seu passo não era nem mais lento nem mais apressado do que antes. Nem mesmo era possível afirmar que fora atingido. Embora não fizesse barulho ao andar, dava para sentir o seu peso, enquanto se aproximava.

A feiticeira deu um berro e correu, desaparecendo entre as árvores. Tio André quis fazer o mesmo, mas tropeçou numa raiz e caiu de cara num riacho. As crianças não se moveram. Não podiam. Nem sabiam se queriam. O Leão não lhes deu atenção. Sua boca imensa estava aberta, mas para cantar, não para rosnar. Passou tão perto que poderiam ter tocado em sua juba. Temiam que se voltasse para o lado e desse com eles; mas, apesar do medo, desejavam que isso acontecesse. Era, no entanto, como se fossem invisíveis e inodoros. Depois de dar alguns passos, o Leão voltou-se, passou novamente por eles, continuando o seu caminho na direção do oriente.

Tio André, tossindo e respingando, saiu do riacho.

– Temos de ficar livres dessa mulher, Digory! A fera já se foi. Dê-me a mão e pegue logo o anel.

– Longe daqui! – gritou Digory, afastando-se. – Cuidado com ele, Polly; venha aqui ao meu lado. Vou lhe dizer uma coisa, tio André: nem mais um passo, senão a gente some.

– Faça o que eu lhe falei, rapaz – disse o tio. – Você é muito desobediente, um jovenzinho muito malcomportado.

– Calma! – disse Digory. – Queremos ficar e ver o que vai acontecer. Pensei que o senhor gostasse de conhecer outros mundos. Não gosta mais?

– Gostar? – pulou tio André. – Olhe o estado em que estou! A minha melhor roupa!

Estava mesmo uma coisa! Quanto mais elegante está uma pessoa, pior fica depois de embolar-se num cabriolé em frangalhos e cair dentro de um córrego:

– Não estou dizendo que o lugar não seja interessante – acrescentou o tio. – Se eu fosse mais moço, talvez arranjasse um bom companheiro para voltar aqui. Um desses caçadores destemidos. O lugar não é nada desprezível. O clima, por exemplo, é uma delícia. Nunca respirei um ar assim. Acho que me teria feito bem à saúde, se as condições não fossem tão desfavoráveis. Se tivéssemos ao menos uma espingarda!

– Que espingarda que nada! – falou o cocheiro. – É melhor eu ir ver se consigo dar uma limpada no Morango. Olhe, esse cavalo tem mais juízo que certa gente que eu conheço...

Andou até o animal e começou a fazer os barulhinhos que fazem os tratadores de cavalos.

– O senhor acha que aquele leão pode morrer com um tiro? – perguntou Digory. – Ele nem ligou para a barra de ferro!

– Apesar de tudo, aquela moça é valente. Era preciso coragem para fazer aquilo. – E o tio começou a esfregar as mãos e a estalar os dedos, como se mais uma vez se esquecesse do medo que tinha da feiticeira.

– Foi uma covardia – interveio Polly. – Que mal ele fez a ela?

– Ei, o que é aquilo? – gritou Digory, ao avistar algo a uns metros de distância. – Polly, venha correndo.

Tio André também foi, não porque estivesse curioso, mas por querer ficar perto das crianças, à espera de uma oportunidade de apoderar-se dos anéis. Ao ver do que se tratava, acabou interessado. Era um poste de luz, dos antigos, perfeito, com uns poucos palmos de altura, mas que foi crescendo à medida que olhavam, como as árvores haviam crescido.

– Está vivo também... quer dizer, está aceso – exclamou Digory.

Era verdade. A claridade do sol, naturalmente, tornava difícil ver a pequena chama dentro do lampião, a não ser quando uma sombra se projetava nele.

– Notável, notabilíssimo! – murmurou tio André. – Nem mesmo eu poderia imaginar magia como esta. Estamos num mundo onde as coisas todas, mesmo os postes, nascem e crescem. Não posso atinar com o tipo de semente que dá poste de iluminação.

– Não está vendo? – perguntou Digory. – É o lugar onde caiu a barra de ferro... a barra que ela arrancou do poste de Londres. Está virando um postezinho.

Mas já não era tão pequeno assim, pois enquanto ele falava isso o poste alcançava a sua altura.

– Fantástico, fantástico! – exclamava tio André, esfregando as mãos com mais energia do que nunca. – Ah, ah! Eles se riam das minhas magias. Aquela louca da minha irmã me considera um lunático. Quero ver o que vão dizer agora! Descobri um mundo onde tudo explode de vitalidade e cresce. Colombo, falam muito de Colombo. Que é a América, comparada a isto? As possibilidades comerciais deste país são ilimitadas. É só trazer uns pedacinhos de ferro velho para cá, enterrá-los, e eles crescerão como locomotivas, como navios de guerra, o que se quiser. O preço de custo é nada, e eu posso vendê-los aos preços do mercado inglês. Desta vez fico milionário. Sem falar no clima! Já estou me sentindo vinte anos mais jovem. Posso fazer disto aqui um lugar de tratamento. Uma boa clínica aqui não pode valer menos do que vinte milhões por ano. É claro que algumas poucas pessoas têm de ser iniciadas no meu segredo. A primeira coisa a fazer é liquidar aquela fera.

– O senhor é igual à feiticeira, sem tirar nem pôr – disse Polly. – Só pensa em matar.

– E, quanto a mim – continuava o tio num sonho feliz –, e imprevisível por quanto tempo poderei viver enquanto estiver aqui. Isso é uma coisa de capital importância quando já se chegou aos sessenta anos. Não ficaria nada espantado se eu não envelhecesse nem um dia a mais nesta terra! Fantástico! A terra da eterna juventude!

– Oh! – exclamou Digory. – A terra da eterna juventude! Acha que é isso realmente? – Lembrou-se do que dissera tia Lera à senhora das uvas, e doces esperanças o animaram outra vez. – Tio André, acha que alguma coisa por aqui poderia curar a mamãe?

– Que história é esta, menino? Isto não é farmácia. Mas eu estava dizendo...

– O senhor não dá a mínima importância a ela – proferiu Digory, irritado. – Pois acho que está errado; afinal, trata-se de sua irmã também. Bem, deixe para lá. Vou perguntar diretamente ao Leão se ele pode me ajudar.

Virou-se e saiu bruscamente. Polly esperou um instante e foi atrás.

– Epa! Espere! Volte aqui! Esse menino ficou doido...

Tio André seguiu as crianças, com a maior cautela: não queria nem ficar longe demais dos anéis, nem perto demais do Leão.

Em poucos minutos Digory atingiu a orla do bosque. O Leão continuava a cantar, mas a canção era de novo diferente, mais agreste do que as outras. Fazia a gente querer correr, pular, subir nas árvores, gritar, ir ao encontro dos outros para abraçá-los ou esmurrá-los.

Digory ficou com o rosto quente, vermelho. Nem tio André escapou aos efeitos da música, pois Digory o ouviu dizer: "Moça valente! Que pena o temperamento dela! Mas que mulher, que mulher danada!"

No entanto, o que a canção provocava nos seres humanos não era nada, se comparado com o que estava acontecendo ao resto daquele mundo.

Você é capaz de imaginar um monte de terra relvosa a borbulhar como água na chaleira? Não pode haver melhor descrição do que estava acontecendo. Por todos os lados a terra se inchava em corcovas. Eram montes de tamanhos diversos,

alguns do tamanho de um formigueiro, outros do tamanho de um barril, outros do tamanho de uma cabana. E as corcovas mexiam-se e ficavam inchadas até estourarem: aí, a terra se derramava e de cada monte surgia um bicho. As toupeiras iam aparecendo, e também os cachorros, latindo no momento em que livravam a cabeça, do mesmo modo como fazem para atravessar uma passagem estreita na cerca. Os mais divertidos eram os veados, pois os galhos dos chifres surgiam muito antes do resto, dando a impressão de árvores. As rãs iam logo, coaxando, coaxando, dar um mergulho no rio. Panteras, leopardos e os bichos desse gênero punham-se logo a limpar as patas traseiras e as garras dianteiras. Borboletas esvoaçavam. Abelhas começavam imediatamente a trabalhar com as flores como se não tivessem um segundo a perder. Mas o grande momento, o maior de todos, foi quando o maior dos montes de terra partiu-se como um pequeno terremoto e de lá surgiram o vasto costado, o carão ajuizado e as quatro colunas que servem de pernas ao elefante. Já mal se escutava o canto do Leão: era um mugir, um crocitar, um uivar, um bramir, um relinchar, um latir, um trinar, as vozes todas dos animais.

Mas Digory ainda podia ver o Leão. Estava tão grande e tão brilhante que era impossível tirar os olhos dele. Os outros animais não mostravam o menor medo. Digory ouviu naquele instante um som de cascos. Um momento depois o velho cavalo do cabriolé passou a trote e foi reunir-se aos outros animais. (O ar fizera-lhe bem, como fizera bem a tio André; já não parecia nem um pouco com o pobre e velho escravo das ruas de Londres; pisava firme, de cabeça erguida.)

Pela primeira vez, o Leão ficou em total silêncio, indo e vindo entre os animais. Aqui e ali aproximava-se de dois deles (sempre dois de cada vez) e tocava-lhes os focinhos com o seu. Escolhia dois castores dentre todos os castores; dois leopardos dentre todos os outros; e deixava os demais. Algumas espécies não foram tocadas. Os pares tocados imediatamente abandonavam os outros e seguiam o Leão. Este finalmente ficou imóvel. Todas as criaturas tocadas por ele aproximaram-se e formaram um círculo ao seu redor. Os outros começaram a dispersar-se. Os bichos eleitos ficaram em completo silêncio, todos com os olhos fixos no Leão. Só os felinos uma vez ou outra davam uma rabanada.

Pela primeira vez naquele dia havia silêncio absoluto, exceto pelo barulho da água corrente. O coração de Digory batia desordenadamente: sentia que algo muito solene estava para acontecer. Não se esquecera de sua mãe, mas também sabia que, nem mesmo em nome dela, poderia interromper a solenidade.

O Leão, cujos olhos jamais piscavam, olhava para os animais com dureza, como se fosse incendiá-los com o olhar. Uma transformação gradativa começou a ocorrer neles. Os menorzinhos – os coelhos, as toupeiras e outros do tipo – ficaram um pouco maiores. Os grandões ficaram um pouco menores. Muitos animais estavam sentados nas patas traseiras. Muitos viravam a cabeça de lado como se quisessem entender. O Leão abriu a boca, mas não produziu nenhum som: estava soprando, um sopro prolongado e cálido. O sopro parecia balançar os animais todos, como o vento balança uma fileira de árvores. Lá em cima, além do véu de céu azul que as esconde, as estrelas cantaram novamente: uma música pura, gelada, difícil. Depois, vindo do céu ou do próprio Leão, surgiu um clarão feito fogo (mas que não queimou nada). As duas crianças sentiram o sangue gelar-lhes nas veias. A voz mais profunda e selvagem que jamais haviam escutado estava dizendo:

– Nárnia, Nárnia, desperte! Ame! Pense! Fale! Que as árvores caminhem! Que os animais falem! Que as águas sejam divinas!

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