Partes X e XI
Parte X
-Eudamón tem haga? –perguntou por perguntar uma jovem linda e superficial que tinha se sentado na primeira fila da sala magna da faculdade. A garota se destacava do resto, não só por sua beleza, mas também por sua roupa, mais apropriado para um coquetel que para uma aula de arqueologia. –Não, Eudamón se escreve sem haga, tchê. Se escreve exatamente como está no quadro –respondeu o doutor Bauer, o brilhante arqueólogo que estava dando sua aula. –Ah, que lezada! –disse entre risos a aluna, tratando de captar a atenção do professor, mas ele nem sequer a olhou, e continuou apaixonado com o tema. A jovem era Malvina Bedoya Aguero, irmã caçula de Bartolomé e tia do Thiago...
Quando era pequena foi uma garota consentida, superficial e caprichosa. Quando cresceu, continuava sendo igual. Quando terminou o colégio secundário –dois anos mais tarde do que devia, repetiu duas vezes-, se inscreveu no curso de desenho de indumentária, porque lhe custava muito conseguir bolsas que combinavam com sapatos. “Oh, my God, é tão difícil combinar uma bolsa com os sapatos?” Se se inscrever no curso ela achou difícil, muito mais complicado foi encontrar a sala onde se dava a matéria que ela procurava. Abrindo porta atrás de porta, se topou com a sala magna, onde se cursava o último período de arqueologia. Ao se juntar acreditou escutar uma frase de dica –“trabalhos em couro?”- e pensou que enfim tinha achado sua aula. E aí o viu, na frete da sala, com uma camisa xadrez aberta –divina-, sobre uma camiseta verde militar –sonhada-, uma calça jeans, umas botas sem brilho pelo uso e um chapéu e couro marrom gastado. “Eu morro morta! Esse professor sabe de moda”, pensou e se sentou. Não podia deixar de olhar seus olhos azuis, seu cabelo dourado, seus dentes brancos –onde será que ele faz o clareamento?-, nem deixar de escutar o som de sua voz. Ela adorava escutar as palavras que ele dizia, mesmo não entendendo nada. E claro nunca descobriu que estava numa aula de arqueologia. Nada disso importava, porque no final da aula ela sabia de duas coisas: que Eudamón se escrevia sem haga –ou com haga?-, e que queria ser a namorada do doutor Bauer. Chegou pontualmente a cada aula de arqueologia e, mas continuava se perguntando quando começariam a fazer trabalhos no couro, ela ficava fascinada em se sentar na primeira fila e imaginar diferentes maneiras de abordar a Nick, como ela o chamava intimamente. Ele continuava ignorando-a, não por descortesia, mas sim porque quando dava aula viajava no tempo, ao tempo de que ele falava. Tinha passado algumas poucas semanas quando Malvina decidiu que era hora de agir. Sabendo que Nick daria uma palestra fora da faculdade, decretou que esse seria o momento de se aproximar dele. Chegou no museu com um vestido azul elétrico, sonhado, e escuto com toda paciencia a palestra. Depois, durante o coquetel, enfim pode chamar sua atenção. Ele a viu e se deslumbrou com sua beleza. Não associou essa mulher com a aluna que escrevia Eudamón com haga, mas em seguida, ela esclareceu de onde o conhecia e o parabenizou por suas aulas, mas se permitiu criticar que havia pouca prática, que queria começar os trabalhos no couro. Mesmo ele não entendendo muito bem o que ela se referia, lhe anunciou que as próximas aulas talvez fossem menos teóricas, já que seria substituído por outro professor: estava a ponto de fazer uma importante viagem. Ela se sentiu como morta. Dos meses sem ver a Nick? No way! Ele comentou que viajaria para França, a Cóte d’ Azur, onde leria um seminário. Dois meses entre francesas divinas? No way! Viajaria com seu filho. Nick
tem um filho, é casado e feliz? No way! Ele lhe contou que era pai solteiro, que a mãe não vivia com eles. E olhando a hora se desculpou, devia se apressar porque viajaria nessa mesma noite. Nick tinha ido sem leva-la em casa, sem beija-la nem pedi-la em namoro naquela mesma noite? No way!
Bartolomé gritou tão alto que até o céu escutou quando Malvina exigiu uma viagem para França, na primeira classe, claro, no mínimo executiva, hotéis de luxo e cartão de crédito sem limite. Já falava de Nick como seu namorado. Bartolomé ignorava, apenas tinham conversado uma vez, pelo que concluiu: “Que seu namorado pague”, mas Malvina era insistente, persuasiva, e jogou sua melhor carta. Mesmo sendo bastante lezada, sabia conseguir o que queria. Tinha a informação que a herança da tia Amalia estava sendo tratada, mas sabia também que, em um gesto terno, sua tia tinha adiantado um suculento monte da herança, a absurda cláusula de que só teria acesso a ela quando se casasse. Com esse arumento convenceu a Barto. Essa viagem podia ser a ocasião de consolidar o namoro. Bartolomé aceitou com a esperança de casar sua irmã e no fim perceber algo da herança. Viajaria na segunda classe, claro. Iria aos hotéis com banheiro dividido. E nada de cartão. Só devia tirar mais horas dos pivetes na rua para sustentar o gasto. Malvina partiu para a França. Grande e grata foi a surpresa de Nicolás quando a viu ali. Começaram a se frequentar: às vezes ela ia as suas aulas, às vezes iam passear na praia. Pelas noites, ele a deixava na porta de um grande hotel cinco estrelas. Ela se despedia da entrada, e quando ele ia embora, ela caminhava dez quadras até seu hotel. Mas Malvina conseguiu o que queria: ser registrada por Nicolás. Foi conhecendo sua vida. Soube que esteve muito apaixonado de sua ex-mulher, Carla. Soube que ela o abandonou para fugir com seu pior inimigo, Marcos Ibarlucía. Que ele cuidou de Cristóbal, seu filho recém nascido, e que mantinha vivo o grande sonho de seu pai e de seu avô: encontrar a Ilha de Eudamón. Uma noite de verão –Malvina estava surpreendida de que na França fizesse tanto calor em julho-, enquanto caminhavam pela praia, iluminados por uma lua enorme que se refletia nas águas tranquilas do Mediterrâneo, Nicolás lhe falou suas fantasias e desejos . E ela entendeu que tinha alcançado o que queria.
Parte XI
Nicolás Bauer era o único filho do doutor Andrés Eneas Bauer e Berta Gough. Criado desde pequeno como um adulto, se transformou em uma grande criança adulta. Nicolás nunca soube dizer não. Não sabia dizer não a Berta quando ela cortava seu cabelo, nem quando ela o vestia com bermudas e suspensórios. Não sabia dizer não ao seu pai quando, como único passeio, o levava uma e outra vez ao Museu Arqueológico Nacional. Nunca pode dizer não a sua mãe, que se entregou a depressão depois da morte de seu pai. Obsessivo e chamado de delirante, o doutor Bauer morreu num naufrágio, atrás de uma pista falsa que o levasse a Eudamón. Berta quis evitar esse destino a seu filho e o persuadiu de estudar outra coisa. Medicina. Nicolás não pode dizer não, e também não pode confessar que, em segredo, estava estudando também Arqueologia. Berta tinha pavor que seu filho também ficasse obcecado com essa ideia maluca de encontrar a Ilha de Eudamón. Ilha mística da tribo dos prunios, cuja procura incansável consumiu as energias e o patrimônio do doutor Bauer pai, além de ser motivo de chacota e o desprestígio entre a comunidade arqueológica. Também não soube dizer não a Carla, a explosiva e bela mulher que conheceu na faculdade. Carla era linda, apaixonada... E livre. Brincava com ele, não se prendia a nada nem a ninguém. Nicolás sabia que tinha que se afastar dela, que era um veneno que ia consumindo ele de pouco em pouco. Mas ela não o soltava, tinha ele preso com um laço invisível, o afastava e o aproximava, mas nunca o soltava. E ele não soube dizer não. Também não pode dizer não me deixe quando ela se foi com Marcos Ibarlucía, um homem ao que ele não conhecia pessoalmente, mas sabia que era um traficante de relíquias arqueológicas, o pior dos crimes para Nicolás. Também não pode dizer não quando Carla voltou a seus braços, grávida e abandonada. Ele a recebeu sem críticas e por um tempo imaginou uma vida juntos, um futuro, uma família. Não teve a ocasião de lhe dizer não se vá, o dia que acordou com uma carta na que ela explicava sua impossibilidade de se prender a algo. E um filho era algo que a prendia muito. Os abandonou, a ele e a Cristóbal, o filho de Carla e de Marcos Ibarlucía, a quem Nicolás criaria como seu próprio filho. E aí tudo mudou. Ser pai lhe voltou adulto subitamente; como se o tivessem mergulhado em um lago gelado, acordou e deixou de ser uma criança que não podia dizer não. Deixou o curso de medicina e se dedicou a terminar seu doutorado em Arqueologia. Contava com a ajuda de seu fiel amigo Mogli, um selvagem da tribo zahorí, a quem Nicolás tinha salvado da morte em uma expedição pela África. De acordo com sua cultura, Mogli devia lealdade e serviço a seu salvador, e por isso o servia com submissão. Nicolás não aceitava isso, e o tratava com um amigo. Assim construíram uma estranha família: um jovem arqueólogo recém doutorado, um selvagem zahorí que falava um estranhíssimo espanhol, e o pequeno Cristóbal que crescia feliz, em um mundo de viagens, expedições, leões e múmias. A vida de Nicolás tinha voltado inesperadamente feliz. Era feliz vendo Cristóbal crescer, o Cristobola como Mogli o chamava em seu dialeto particular. Era feliz com seu sucesso profissional. E era feliz com sua apaixonante caça a Ilha de Eudamón. Mas Cristóbal estava crescendo. Já tinha sete anos e era tempo de se estabelecer, de ter um casa, um colégio; de fazer amigos e fazer raízes. E sobretudo, Cristóbal precisava de uma mãe. Então soube dizer não a seu desejo de vagar pelo mundo, decidiu se estabelecer. E se dispôs a conhecer uma mulher com a que pudesse formar uma família. E apenas começou a pensar nisso, apareceu uma mulher linda que o deslumbrou. Foi num coquetel. Ela se aproximou com seu esplêndido sorriso, com esse vestido azul que se movia suavemente, com um campo de trigo a luz da lua. E falou com essa voz de garota rica. Falava de bolsas de coro, combináveis com sapatos, mas ele apenas prestava atenção ao que dizia. Muito maior foi sua surpresa quando, poucos dias depois, voltou a se encontrar com ela na Unte d’ Azur. Pensou no destino, pensou em sinais que não devia deixar de escutar. Dividiram vários dias de passeios, de bolsas de coro e conversas de por que era impossível combinar sinais com listras. Nicolás estava encantado. Ela não era inteligente, mas ele a achava divertida. Faziam uma combinação perfeita. Ela era bela, doce e graciosa. Ele era inteligente, apaixonado e sonhador. Antes que Nicolás terminasse de fazer a proposta de serem namorados, ela tinha dito sim. Aos quatro meses de namoro, ele quis pergunta-la sobre seus planos para o futuro; não terminou de pergunta-la se ela sonhava em ter uma família, quando ela disse que aceitava se casar com ele. Ele não conseguiu dizer que Cristóbal precisava de uma mãe , quando ela prometeu que seria a mãe do Cristiancito com prazer, mesmo que ela ainda nem tinha conhecido ele e nem lembrava bem o seu nome. Quase sem se dar conta, tinha programado um compromisso, uma apresentação a sociedade do casal. E a sociedade era uma questão importante; Malvina era uma Bedoya Aguero, e eles davam muita transcendência a isso. Conhecer Bartolomé acabou de apaixonar a Nicolás de Malvina. Era um homem rico que tinha transformado sua luxuosa mansão numa mundação que dava teto, comida e estudos a um grupo de crianças órfãs. Nicolás percebeu que esse, definitivamente, era o seu lugar.
Uma pista sobre um papiro que podia conter dados precisos sobre a localização da ilha de Eudamón o levou a Malásia, pra aonde pariu com Mogli e Cristóbal. Enquanto isso, Malvina avançou com a organização da festa de compromisso. Mesmo que a palavra festa, junta com compromisso, gerou um pouco de medo em Nicolás, tratou de não pensar nisso e seguiu concentrado em seu sonho. Só se lembrou disso quando descobriu que a pista era não era capaz de o conduzir até a ilha e recebeu uma ligação de Malvina para checar se seu voo de volta chegaria a tempo. No dia seguinte teria lugar a festa. Assim foi como que em 21 de março de 2007 Nicolás voltou a seu pai, se vestiu com a fantasia veneziana que Malvina tinha escolhido para ele, vestiu seu filho e tentou pentear esse bolo de cabelo impossível de desembaraçar, e juntos se dirigiram para a Mansão Inchausti. Tinha chegado a hora de abaixar a cabeça e se comprometer. Tinha chegado a hora de dizer sim.
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